MÃE-GALINHA



2006-11-03

Palavras novas

- Maria! Os teus óculos??
- Faleceram.

Acontece-me muitas vezes não me lembrar se já disse isto ou aquilo, se já escrevi isto ou aquilo. Se calhar já escrevi sobre o "falecimento" que lhe saíu da boca à espera da minha reacção. Faleceram como? - perguntei. Estão desaparecidos, mãe. Faleceram, morreram. Mas eles ressuscitam. E tu crês na ressurreição, minha filha? Achas, mãe? Ressurreição é como o regresso dos mortos-vivos. Nas almas acredito. Corpos mortos que vivem outra vez, isso é que não.(Maria dixit)

Eu, quando era pequena, vivia de traseiras para um cemitério e contava os dias que faltavam para a noite de halloween mas ainda não havia halloween. Havia mas eu não sabia. Era a noite das velas, como lhe chamávamos lá em casa. Uma noite por ano, da varanda, víamos centenas de velas a alumiar o caminho das almas. Eu não tinha medo de cemitérios. Agora tenho. Foi numa dessas noites de contemplação de almas que fumei o meu primeiro cigarro. Roubei-o do maço do meu pai e fumei-o sozinha na varanda, a olhar para as velas. A não ser as alminhas, ninguém me tentou ao meu primeiro cigarro.

Este ano, pela primeira vez depois de conhecer a verdadeira origem do halloween e depois de ter a certeza absoluta que não tínhamos importado a mania das abóboras mas antes nos tínhamos esquecido de espantar os espíritos maus, enfeitei a casa e vesti a pele da bruxa. Roguei pragas. As minhas miúdas tocaram às campaínhas e trouxeram um saco de doces e algumas dores de barriga. A prova dos espíritos maus vê-se nos joelhos da tia delas que nesse lusco-fusco do haloloween tropeçou numa alma perdida e se estatelou ao comprido no alcatrão rugoso. Felizmente ainda pôde levá-las ao pão por deus enquanto eu rogava as pragas do outro lado da cidade perante uma plateia que cambaleava nas intermitências de uma morte anunciada.
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