MÃE-GALINHA



2006-11-17

Boca-doce


Durante cinco segundos não me consegui mexer e a sensação era a de que me tinha entrado um enxame de abellhas para dentro dos olhos.
Abri a torneira do lava-louças, as mãos em concha, a água gelada na cara. Aos poucos as pálpebras cediam, o ardor, que nem era bem ardor, ía passando e o açúcar dissolvia-se na água.

O cenário:
Uma cozinha. Uma panela com água a ferver. Um frasco para esparguete, vazio, na mão direita.

A cena:
Com o frasco do esparguete na mão direita, a personagem abre, com a mão esquerda, o armário que está num nível acima da sua cabeça. É importante a posição da cabeça, atirada para trás, olhos postos numa prateleira alta onde está o pacote suplente de esparguete. Num momento, a mão esquerda larga o puxador do armário e, num gesto brusco, como são quase todos os gestos desta personagem, alcança o pacote de esparguete. No percurso, a mão toca no açucareiro, um daqueles açucareiros baratos, de inox, em que a colher do açúcar fica com o cabo de fora. O açucareiro está cheio, encheu-o a personagem logo de manhã, e o toque do braço no cabo da colher, mesmo que num repente e num raspão, faz com que o açucareiro se vire e se despeje todo, inteirinho, direitinho, em cima dos olhos muito abertos da personagem. Os olhos estavam muito abertos.

Havia açúcar por todo o lado. Em mim, no chão, na travessa da carne. Dentro dos meus olhos. Dentro dos meus olhos. Muito açúcar dentro dos meus olhos.

Quando consegui chegar à casa de banho e ver-me ao espelho, as minhas pestanas estvam pejadas de grãos de açúcar colados ao rímel. Limpei aquela gosma, desci as ecadas, limpei a cozinha, sacudi o açúcar da travessa da carne e acendi um cigarro.

- que sabor esquisito... - Cigarros com sabor esquisito só há muitos anos, que agora tenho outras coisas que me fazem rir à gragalhada. Mas este sabias mesmo a... açúcar

Apaguei o cigarro, bebi um copo de água e constatei o fenómeno. A minha saliva estava doce. A minha boca estava doce. Eu estava doce por dentro.
O açúcar entrou-me pelos olhos dentro e espalhou-se dentro de mim.

Isto foi ontem à noite e acho bem que o fenómeno tenho feito de de mim uma pessoa menos amarga. Juro que foi tudo verdade.
Hoje ainda estou a cuspir doce.
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© Rita Quintela
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